segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Viver, ninguém sabe.

Quando abri a cortina, da janela pude ver um aglomerado de pessoas na avenida todas com expressões nervosas, pareciam gritar simultaneamente, sincronizadamente, certamente seria algum protesto. Logo fechei, nenhuma causa me interessava a defender e nem ouvir. Já estava escurecendo e lá fora a chuva de fim de ano caia sem parar, o filme que passava na TV ficou no mudo, o clamor da chuva era bem mais interessante de se ouvir, coloquei o disco de vinil para rodar mas também sem som, gostei de vê-lo, rodando, rodando, rodando apenas. No meio disso, me lembrei que não sabia mais qual era a frequência da minha voz, tentei, me esforcei para lembrar mas não consegui. Porém não falei.
Um cachorro começou a latir longe, incessantemente, um latir desafinado, insuportável. Olhei para o lado e vi o livro de Guimarães Rosa, o mesmo que mais cedo na página 212 me explicava que na roça tudo é canto e recanto e há sempre um cachorro latindo longe, no fundo do mundo. Mas aqui é cidade, talvez eu devesse ir para roça, talvez os cachorros de lá não são desafinados como os daqui, talvez sejam meus ouvidos.
Antes do livro, tinha ido à padaria, era bem cedo, e enquanto estava na fila me veio aquela música na cabeça; "e até quem me vê lendo o jornal, na fila do pão, sabe que eu te encontrei e ninguém dirá que é tarde demais..." Eu sorri, não sei o porquê sorri, sorri. Sim, o romantismo já havia perdido pois agora era regado só por ausência. Ta aí, sorri por ainda ser capaz de sentir romantismo, de ainda ter esperança de não ser tarde demais.
Por falar em esperança, quando cheguei no trabalho ouvia o jornalista dizer; "Dona Esperança foi a primeira confirmação de morte no incêndio no edifício no Centro, rápido, publiquem!" Dessa vez eu não sorri, eu gargalhei, cruelmente eu gargalhei. Não julguem, que eu fingirei que gargalhei por outra coisa. Mas no fundo, aquilo era uma gargalhada de puro realismo, gargalhada de uma história que tanto no literal quanto no figurado era a pura verdade.
No lanche da tarde, tive que ir ao aeroporto buscar um dos donos do jornal, meu chefe impôs essa condição. Alguns, já imagino que pensavam o quão ótimo aquilo era, no caminho podia eu elogiá-lo exacerbadamente para conseguir a coluna semanal. Para mim, era ficar sem o lanche da tarde. Enquanto esperava, via os aviões pousando que certamente pousavam homeopaticamente em lugar em lugar para a troca dos passageiros humanos, assim como acontece na vida de fato, de quando em quando troco de passageiros humanos na minha excursão.
O disco ainda está rodando, a chuva ainda clamando, as imagens da TV ainda dançando sem som. Resolvi ligar pra mamãe, chamou três vezes, ela sempre me atende na primeira chamada mas dessa vez é porque provavelmente eu não respeitei o seu horário e ela já devia estar dormindo mas mamãe é mamãe e prontamente disse o
_"oi"
mais carinhoso do mundo.
_eu não sei viver.
_ninguém sabe filha.
Aquilo me bastou, mamãe sempre foi muito sábia. Agora vou dormir, quem sabe amanhã, semana que vem ou ano que vem eu aprendo a viver.